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"O relógio de cozinha" de Wolfgang Borchert

  • Stefanie Herzog
  • 24 de mar. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de dez. de 2022

Simples e verdadeiro: Ao descrever situações cotidianas, Wolfgang Borchert, escritor alemão pós-guerra, retrata os traumas da guerra de uma maneira impactante. Leia o seguinte conto e sinta.


O relógio de cozinha

Traduzido do alemão por Stefanie Herzog


Já de longe, viram-no se aproximar, pois ele chamava a atenção. Seu rosto era o de um velho, mas pelo jeito que caminhava devia ter somente vinte anos. Com seu rosto de velho sentava-se no banco, junto a eles. E então lhes mostrava o objeto que trazia consigo.


Este foi o nosso relógio de cozinha, disse e olhava um após o outro, olhava todos sentados aí, no banco ao sol. Sim, consegui achá-lo. Ele sobrou.


Ante de si, segurava um relógio de cozinha redondo e branco igual um prato. Com o dedo, limpava cuidadosamente os números pintados em azul.


Ele não tem mais valor algum, afirmou desculpando-se, eu sei disso. E nem é tão bonito assim. Parece um simples prato, sabem, um com esmalte branco. Mas os números azuis são até bonitinhos, eu acho. Claro, os ponteiros são só de lata. E agora nem se movem mais. Não. Por dentro ele está quebrado, não tem dúvida. Mas sua aparência é a de sempre, mesmo não funcionando mais.


Com a ponta do dedo desenhava um círculo tímido ao longo do canto do prato-relógio. E baixinho falou: Ele sobrou.


Os que estavam sentados no banco ao sol não o olharam. Um fitou seus sapatos e a mulher olhava para dentro do carrinho de bebê. Aí alguém disse:


Você deve ter perdido tudo.


Sim, sim, assentiu alegremente, imaginem só, foi-se tudo, tudo mesmo! Só ele aqui, ele sobrou. E ergueu novamente o relógio, como se os outros já não o conhecessem.


Mas não funciona mais, disse a mulher.


Não, não. Verdade. Está quebrado, eu sei disso. Mas de resto não mudou nada, está como sempre: branco e azul. E novamente lhes mostrava seu relógio. E o que é o melhor, continuou ansioso, o melhor nem contei ainda. Pois, lhes digo agora: Parou às duas e meia. Imaginem só, justamente às duas e meia.


Então sua casa certamente foi atingida às duas e meia, disse o homem e, sentindo-se importante, empurrou o lábio inferior para frente. Já ouvi isso várias vezes. Os relógios param quando a bomba cai. Por causa da pressão.


Ele olhou para seu relógio e com ar de superioridade meneou a cabeça. Não, meu caro, não, o senhor está equivocado. Não tem nada a ver com as bombas. Não precisa falar sempre das bombas. Não. Às duas e meia acontecia algo bem diferente, os senhores somente não sabem disso. É que a ironia é essa, que parou justamente às duas e meia. E não às quatro e quinze ou às sete. Pois às duas e meia eu sempre chegava em casa. De madrugada, quero dizer. Quase sempre às duas e meia. Essa é que é a ironia.


Ele olhava os outros, mas esses haviam desviado seus olhares. Ele não os encontrou. Então com a cabeça acenou para seu relógio: Aí eu estava com fome, obviamente. E ia sempre diretamente à cozinha. Nesse momento eram quase sempre duas e meia. E aí, aí é que vinha minha mãe. Não importa o quão silencioso eu abria a porta, ela sempre me ouvia. E quando eu, na cozinha escura, procurava algo para comer, a luz de repente se acendia. E ali estava ela, de pé, com seu casaco de lã e seu cachecol vermelho em volta do pescoço. E descalça. Sempre descalça, apesar da cozinha ter piso de azulejo. Ela cerrava os olhos quase que por completo por causa da claridade da luz. Pois já havia dormido. Era madrugada, afinal.


Tão tarde de novo, comentava ela. Nunca dizia mais. Somente: Tão tarde de novo. E então esquentava meu jantar e observava-me enquanto comia, esfregando os pés um no outro, pois o piso era muito gelado. De madrugada nunca calçava sapatos. Me fazia companhia até eu estar satisfeito. Depois, quando eu já havia desligado a luz no meu quarto, ainda a ouvia guardar os pratos. Todas as madrugadas eram assim. E quase sempre às duas e meia. Eu achava completamente natural que ela, às duas e meia da madrugada, preparava meu jantar na cozinha. Completamente natural. Pois sempre o fazia. E nunca falava mais que: Tão tarde de novo. A mesma frase, todas as vezes. E eu pensava que tudo isso nunca acabaria. Era tão natural para mim. Havia sido sempre assim, por que mudaria?


Por um momento, pela duração de um respiro, estava completamente silencioso no banco. Então ele disse baixo: E agora? Olhava para os outros, mas não os encontrou. Aí se virou para o rosto redondo do relógio e lhe disse na cara branca e azul: Agora, agora sei que foi o paraíso. O paraíso de verdade.


No banco, ficaram em silêncio. Então a mulher perguntou: E sua família?


Sorriu-lhe, constrangido: Ah, a senhora quer dizer meus pais? Pois é, esses também se foram. Tudo se foi. Tudo, consegue imaginar? Tudo.


Constrangido sorriu de um para o outro, mas eles não o olhavam.


Então ergueu o relógio novamente e riu. Só ele, riu, ele sobrou. E o melhor é que parou justamente às duas e meia. Justamente às duas e meia.


Depois não falou mais nada. Mas seu rosto era velho, tão velho. E o homem sentado ao seu lado fitava os sapatos. Mas não os via. Pensava na palavra que não parava de ecoar em sua cabeça: Paraíso.



Sobre o autor:

Wolfgang Borchert é, apesar de sua parca produção literária, um dos autores mais importantes da Alemanha pós-guerra. Sua obra é marcada pelos horrores vividos na guerra e pela desolação duma Alemanha física e psicologicamente destruída. Ela pertence à chamada “Trümmerliteratur”, literatura de escombros, nome dado às produções literárias alemãs feitas imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.

Borchert nasceu em 1921. Já com quinze anos escreveu seus primeiros poemas, mas entre 1945 e 1947 produziu a maior parte de sua obra, que conta com vários poemas, contos e uma peça de teatro. Morreu em 1947 em decorrência das sequelas da guerra, um dia antes de sua peça estrear nos palcos.

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© 2022 by Stefanie Herzog.

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